Está a decorrer o Mundial de Futebol Feminino e levantam-se, uma vez mais, uma série de questões que nada têm a ver com os jogos que estão a decorrer. Por exemplo o facto de os média darem muito pouco destaque (embora seja mais que nunca motivo de destaque) e o porque de as mulheres ganharem muito menos que os homens. Um debate já antigo, que continua. E normalmente a resposta é sempre a mesma: tem a ver com o que o mercado quer e que quem tem mais público, recebe mais espaço nos média e mais dinheiro, bla bla bla. Lógico, ou talvez não. Acredito que seja interessante analisarmos um pouco a história do futebol feminino para entendermos melhor a situação do futebol feminino atual e porque é que campanhas como #GoEqual fazem sentido.
É preciso escavarmos um pouco por isso fica comigo!
Imagina que era o futebol feminino que era A cena. Já imaginaste? Então imagina também que eram as mulheres que enchiam os estádios de futebol com adeptos, absolutamente loucos por elas. Já agora, se não for pedir muito, imagina que havia equipas que conseguiriam trazer 53 000 pessoas para um jogo e que 14 000 pessoas ficariam de fora e imagina que os dirigentes do futebol (masculino) depois decidiu acabar com isto tudo… Bom, na realidade nem precisavas de imaginar, sorry. É que, na verdade, aconteceu mesmo. Wait, what??
Pois é, há 100 anos o futebol feminino era maior que o futebol masculino. Na Inglaterra o futebol feminino é que estava a dominar, totalmente.
No documentário ”When Football Banned Women” (“Quando o Futebol baniu as mulheres”) podemos aprender sobre um periodo no futebol britânico que foi escondido e esquecido. O documentário mostra-nos a história da Dick Kerr Ladies FC e sua super estrela Lilly Parr. A maior estrela de futebol na Inglaterra nos anos 20. Conta a lenda que a Lilly, que na altura tinha 14 anos, uma vez mandou uma bola com tanta força que partiu o braço de um guarda redes que disse que ela nunca lhe iria conseguir marcar um penalti (ouch!)
Isto tudo aconteceu durante a 1ª guerra mundial quando os homens foram à guerra e as mulheres saíram de casa para trabalhar.
Com os homens praticamente todos fora, a fábrica de Dick Kerr & Co em Preston precisava de mão de obra e só havia mulheres para trabalhar. Era um trabalho duro e monótono e sentiu-se a necessidade de atividade que pudesse fortalecer tanto a força física como o ânimo das trabalhadoras. Tal como tinha sido para os homens, o campo de futebol tornou-se um bom aliado.
As mulheres formaram uma equipa e depois de terem ganho a uma equipa de homens da própria fábrica, um empregado de escritório, Sr Alfred Frankland, fundou a equipa feminina Dick Kerr Ladies FC. Em 1917 a equipa jogou o seu primeiro jogo organizado contra uma equipa de outra fábrica. 10 000 pessoas viram o jogo e o lucro da bilheteira foi todo para causas solidárias.
Seria uma conclusão óbvia dizer que as mulheres entraram como substitutas temporárias dos homens que estavam na guerra. Mas a verdade é que o futebol feminino na Inglaterra tornou-se ainda mais popular quando os soldados voltaram da guerra. A atividade foi determinante para o espírito de um povo em sofrimento num pais que estava sob enorme pressão económica após a guerra. E além de aumentar a moral da população o dinheiro que se ganhava com os jogos das mulheres foi a salvação para muitas das famílias que sofriam os efeitos da guerra.
Com esta situação, tanto a quantidade de jogos como a popularidade das jogadoras aumentaram imensamente.
Em 1920 a equipa Dick Kerr Ladies jogou 30 jogos, fez 133 golos e foi apoiada por centenas de milhares de adeptos. 27 000 pessoas foram vê-las em Barry, 33 000 no dia a seguir em Bolton e em dezembro de 1920 esgotaram os 53 000 lugares no estádio Goodison Parks em Liverpool, e 14 000 pessoas ficaram de fora. Os jornais britânicos estavam em cima dos acontecimentos e as jogadoras eram verdadeiras estrelas. E a Dick Kerr Ladies conseguiu juntar mais de 10 milhões de libras para causas solidárias. E a maior parte das jogadoras trabalhavam full-time fora do campo, tal como acontece imenso ainda hoje.
Curiosamente, o que resta em termos da informação sobre este periodo limita-se quase exclusivamente a um “scrap book” do fundador e manager da equipa, Alfred Frankland e ao diário de uma das jogadoras, a Alice Woods, que tinha 16 anos quando se juntou à equipa. Enquanto o histórico do futebol inglês masculino se encontra bem documentado em museus e arquivos oficiais, a história do futebol feminino foi censurada e até eliminada pois havia muita gente a pensar que mulheres não deveriam jogar futebol.
Em 1921 o futebol feminino era mais popular que nunca, mas no dia 5 de dezembro a assocoação inglesa de futebol (FA) decidiu proibir os jogos das equipas femininas nos seus estádios. De um dia para o outro, as equipas femininas não tinham estádios onde jogar e passaram a ter de jogar sítios como parques públicos.
A justificação da federação foi vaga. Está documentado num documento da FA onde está escrito que é “muito desadequado para mulheres jogar futebol” e que tinha havido queixas em relação ao dinheiro para as causas solidárias. Nos jornais dizia que “o jogo é mau para futuras mães”. As verdadeiras razões ficarão por apurar, mas existem algumas ideias e podemos concluir que o que aconteceu nesta altura, formou a forma que se olha, ainda hoje, para o futebol feminino.
Uma das teorias é que o futebol feminino se tornou demasiado grande e roubou recursos e atenção do futebol masculino. Mas no documentário, é nos apresentada uma teoria que dá que pensar: o futebol feminino tornou-se tão popular que não só ameaçava o futebol masculino e tudo relacionado com ele, como também a sociedade toda.
Após a primeira guerra mundial uma classe operária mais radical começou a crescer. Os mineiros lutaram pelos seus direitos e em março 1921 o estado fechou as minas de carvão. Ao mesmo tempo mais de 2 milhões de trabalhadores no setor de transportes ameaçaram fazer uma greve de apoio aos mineiros, algo que seria um golpe brutal à indústria britânica.
O governo britânico lutava para evitar um colapso total, ao mesmo tempo que os mineiros desempregados e os dois milhões de homens desempregados de outras áreas iam ver jogos de futebol feminino.
Dick Kerr Ladies e outras equipas, que até esta altura tinha doado o dinheiro que ganhavam aos combatentes e as suas famílias, comecaram a apoiar os trabalhadores em greve e assim transformaram-se numa peça importante numa luta política. A união que o futebol feminino oferecia ao povo e o apoio que dava, fez com que fosse considerada uma grande ameaça. Uma força progressiva e poderosa, grande e apoiada nomeadamente pelas classes mais baixas. Uma força revolucionária e, consequentemente, perigosa.
E assim, veio a expulsão devastadora dos estádios da FA em 1921.
As senhoras da equipa Dick Kerr Ladies decidiram continuar a jogar e foram fazer uma digressão aos EUA e Canadá em 1922. Mas ao chegar ao Canadá ficaram surpreendidas. Parece que o país, após pressão, decidiu cancelar todos os jogos e nos EUA só tinham adversários masculinos.
Foi só 50 anos mais tarde que a expulsão do mundo de futebol foi anulada, em 1971. Mas o “comeback” do futebol feminino na Grã Bretanha tem sido muito desafiante.
Não podemos ter a certeza absoluta de que a conclusão no documentário é mesmo a verdade. Mas não deixa de ser extremamente interessante. E provável. O que não podemos negar é a forma como o futebol feminino tem sido censurada.
Inglaterra é considerado um grande exemplo no mundo de futebol. Tal como o Brasil. No Brasil o futebol feminino foi proibido em 1941 e foi legalizado novamente só em 1979.
E em Portugal? Bom, parece que há muito poucos registos históricos de futebol feminino. Há notícias a respeito de jogos realizados em 1935, no geral, encontrar informação sobre a história do futebol feminino em Portugal online não é muito fácil.
Ainda hoje meninas e mulheres na Grã Bretanha, no Brasil, em Portugal e em muitos outros países, lutam contra preconceitos e críticas contra o seu futebol. Felizmente começa-se a ver diferenças, mas para haver alterações a sério, temos em primeiro lugar de levantar a censura. Sim, falo em censura após ter observado a fraca cobertura do Mundial de Futebol Feminino em França. Tanto aqui em Portugal, como no próprio país organizador. Melhor do que antes, mas muito insuficiente.
Mas o que teria acontecido se o futebol feminino teria sido tratado de forma diferente, de forma igual ao futebol masculino? Se se tivesse continuado a dar espaço e destaque? – perguntam vocês (e pergunto eu).
Seria provável que o futebol feminino vivesse uma realidade bem parecida ao do masculino.
Certamente teríamos tantos exemplos de grandes futebolistas mulheres como homens. Se calhar falaríamos tão bem da Lilly Parr ou Alice Woods como do Pelé ou do Eusébio.
Talvez o futebol feminino tivesse continuado maior, ou não… Não sabemos. Só sabemos que é possível o futebol feminino ser grande, bem grande! A Dick Kerr Ladies FC provou isso. A equipa provou que pode ser enorme e o prémio que receberam foi a censura. E é importante lembrarmo-nos que a cobertura nos média é fundamental para gerar interesse e dinheiro.
Claro, not all Dicks are perfect (sorry… não resisti), mas podemos fazer a nossa parte. Além de apoiar movimentos como #GoEqual e interessar-nos por futebol feminino, podemos partilhar informação como esta, deixar de fazer comentários simplistas e fazer perguntas que realmente interessam.
E devemos entender que isto, é sobre muito mais que futebol.
Podes, e deves, ver o documentário aqui: https://www.youtube.com/watch?v=KckOhD-hRUY
Há 30 anos o que eu mais gostava de fazer era jogar futebol. E fazia-o bem. Jogava com os rapazes na escola e na rua. Nem havia futebol feminino perto de mim.
Fui muitas vezes criticada. Eu e mais duas ou três que se atreviam a jogar. E era divertido! E jogávamos como eles…
– Uma menina não joga à bola!
-Só andas lá por causa dos rapazes!
-Tu és maria-rapaz!
E outras coisas do género, que ouvia contantemente…
Vieram então as alterações do corpo com a adolescência e muito evidenciadas… os dias da menstruação eram difíceis, as meninas cruéis, as mulheres incrédulas ao saber que eu gostava e jogava futebol…
Hoje muita coisa mudou. Mas muito, mesmo muito continua igual.
Hoje a minha filha tem 7 anos e joga futebol desde os 5. E joga bem. Até aos 13 anos pode jogar com rapazes. A partir daí têm de ser separados… é assim!
Não fui eu que a mandei jogar futebol. Uma coincidência por ter um irmão no futebol, algumas meninas na equipa, e um treinador que a viu brincar com a bola e pediu para fazer testes. Tinha jeito.
Foi e ficou. Hoje é a paixão de jogar, não de ver futebol. A paixão é mesmo jogar. Tal e qual a mãe…
O preconceito? Esse continua. Menos do que quando eu era miúda, mas continua.
Na escola ela é a futebolista do 1°ano. É ela que leva os amigos para a academia. Porque ali, naqueles momentos, não existem rapazes ou raparigas. São crianças a jogar futebol. A praticar desporto a aprender regras, comportamentos, atitudes.
Eu oiço os comentários da miúda no início dos jogos, mas no final… a miuda pequenina e magricela, é a maior e a mais aplaudida. Tem jeito a miúda. Tem garra. Tem força. E tem fair-play. Sempre que marca um golo, a mãe está lá a aplaudir… e a incentivar.
A minha filha tem 7 anos e joga futebol. E vai jogar até ela querer. Porque é feliz em campo. E eu, sem nunca ter imaginado nada disto, sou muito orgulhosa da minha filha. Ela quebra barreiras. Ela já conseguiu muito mais do que eu.
Ainda falta mudar muita coisa. Mas já se vêem diferenças, felizmente!