Estes dias diferentes podem por vezes ser um pouco desafiantes quando nos esquecemos de respirar e lá vamos nós em piloto automático. E estando juntos em casa, em família, 24 sobre 24 horas, acabamos muitas vezes por perturbar quem está à nossa volta, essencialmente marido e filhos.
Eu tenho uma relação muito especial com o meu filho mais velho, que eu vejo como uma fonte de aprendizagem constante. E principalmente nas características que temos em comum e que eu tenho dificuldade em aceitar em mim, nomeadamente a teimosia (ou persistência), os medos (ou maior sensibilidade), a falta de resiliência (ou a capacidade de procurar o que lhe dá prazer) … Num destes dias, na hora de deitar, dei por mim a interrompê-lo e a dizer-lhe com muito pouca paciência que não conseguia ouvir mais as argumentações dele para tentar ter razão, alegando que estava “triste, cansada e chateada!” Ele lá se calou sem oportunidade de se fazer ouvir, escondeu-se debaixo do edredão e chorou baixinho. Perante a insistência do pai em tentar perceber o que tinha acontecido, a sua resposta imediata foi:
“Eu só queria que a mãe fosse feliz!”
Quando um ser que geramos dentro de nós diz isto, o nosso coração pára, não é?!
Ora bolas! O meu menino intenso e sensível acha que eu não sou feliz? O que é que eu fiz para que ele me visse assim?
Coisas simples e ditas de modo automático nas canseiras rotineiras como “Ai, só queria sair daqui para fora! Não estou com paciência para vos aturar hoje! Só a mim é que me acontece isto, caramba!” podem ser interpretadas do outro lado não como fruto de cansaço, desconexão passageira ou frustração interna e sim como: “Não sou feliz sendo tua mãe!”
Pode nem nos passar pela cabeça esta interpretação e até nem entendemos que seja dada tanta atenção a algo que dizemos em momentos pontuais e sem muito significado para nós. Contudo, se pensarmos um pouco nas palavras que usamos, vemos que se forem lidas literalmente, por um pequeno ser que ainda não entende ironia, sarcasmo ou hiperbolização, elas podem ter uma força tão grande! E há mesmo palavras que podem doer!
Se não, vejamos mais um exemplo ilustrativo.
Há uns dias bati com a cabeça no portão da garagem ao tentar despachar-me para atender a minha filha de dois anos que barafustava pela minha atenção. E enquanto bloqueava sobre se atendia a minha dor ou a da minha filha, tinha o meu filho ao longe a falar para mim e pedir a minha atenção… Cenário muito comum em famílias com crianças a serem crianças, certo?
Claro que antes de respirar e de tentar sequer ouvi-lo, acabo por reagir mais uma vez em modo “piloto automático” e respondo em tom pouco simpático “Estou farta de te pedir para não te pores aos gritos ao longe!” E tal é o meu espanto quando ele se aproxima de mim com um ar cabisbaixo, segurando uma toalha e diz: “Só queria dar-te esta toalha com água fria.” Perante o meu ar incrédulo ele continua e acrescenta:
“Só estava a tentar cuidar de ti. Não é isso que temos de fazer, cuidar uns dos outros?”
Veêm como podem doer não só as palavras, mas também a falta de atenção?
Foi então que engoli em seco e derramei lágrimas de emoção, alegria, culpa, gratidão… por todos aqueles momentos desafiantes, pelos momentos de amor, pelos momentos de desânimo… E pela fantástica capacidade que mais ninguém como as crianças têm em perdoar e manter o foco no que realmente importa. Enquanto nós ficamos muitas vezes agarrados ao passado ou com a mente no futuro, eles simplesmente vivem o presente. E como o vivem!!!
As crianças vivem só no presente. E nós só sabemos viver no passado e no futuro. Por isso é por vezes tão difícil conviver com elas. Quantas vezes nos sentimos irritados porque estamos no meio dos nossos pensamentos e cogitações e elas nos convidam entusiasticamente a acordar para o presente porque querem simplesmente fazer algo connosco?
E nós respondemos fazendo exactamente o contrário, ou seja, empacotando as suas vidas e transportando-as connosco para o futuro. Quantas vezes não passamos a vida a preparar o curriculum delas focados que estamos no seu futuro e lhes retiramos oportunidade de viver a sua infância?
Estamos constantemente a dizer à criança que não é tempo de brincar, é tempo de prepará-la para o futuro. E ainda por cima dizemos que o fazemos por eles, para que o seu futuro seja bom. Mas no fundo, é por nós, para o nosso ego ficar tranquilo e podemos finalmente acreditar que somos “bons pais” ao fazer isto. Ao estar sempre um passo à frente! Vemos como positivo algo que não é!
Os nossos filhos estudam na primária e nós pensamos em preparação para o secundário, eles estudam no secundário e nós pensamos na preparação para a faculdade e quando finalmente estudam lá, nós já estamos de olho no mercado do trabalho e no desempenho curricular para terem um lugar de destaque no mercado de trabalho e uma carreira de sucesso!!! Ufa!!
E quando eles se tornam adultos e formam família, nós paramos e olhamos para trás, para o passado queixando-nos de que o tempo voou e desejando que fosse possível voltar lá atrás, àquele tal passado onde outrora não demos atenção ao presente que era!
Curiosamente, vivemos entre projecção no futuro e memórias do passado. Nunca no presente!
Talvez tudo isto aconteça por uma sede de controlo que produz em nós a ilusão de que será mais fácil se eu souber o que vai acontecer a seguir porque posso planear e saber como agir!
Que ilusão!
Esquecemos que a essência da Vida é mudar, continuar a mudar. A Natureza muda, mudam as estações do ano, muda o estado do tempo diariamente…
Só quando dissermos ao presente “Estou aqui!” e fizermos as pazes com o nosso passado – parando de o carregar às costas – podemos finalmente perceber que aí, nesse não controlo de nada, é que aprendemos finalmente a Viver!
Neste sentido, o recurso ao mindfulness pode ser um grande aliado como “desacelerador” desses pensamentos sobre o passado e sobre o futuro, ajudando-nos a tirar o foco do “e se a vida fosse…” e passando o foco no “a vida é tal como é”.
Talvez se nos permitirmos cuidar melhor da nossa casa interior, consigamos saber aceitar mais facilmente toalhas de água fria vindas de quem somente pretende fazer o mesmo: cuidar de nós com Amor.
Por Augusta Dantas