Academia de Parentalidade Consciente

Berrei Bem Alto

Acompanhei um menino que tem dificuldades de aprendizagem. Tem um pai e um irmão mais novo, com quem vive. Tem uma mãe amorosa, divertida, que se zanga com facilidade, que combina coisas que não cumpre (visitas, prendas, festas…), que sonha em voz alta planos para ter condições de vir a viver com os filhos que nunca chegam a passar de sonhos em voz alta.


A mãe sabe (e diz) que o pai é cuidador, preocupado e «um homem como deve de ser». O pai sabe (e diz) que «as crianças precisam muito da mãe; apesar “de tudo” ela gosta deles e é muito carinhosa; eles gostam muito de estar com ela».
O M. tem os estigmas típicos das crianças irrequietas e impulsivas: «só faz disparates», «é mau», «é preguiçoso e provocador». Também tem um coração gigante, muita criatividade. Gosta de canalização, mecânica e electricidade, de ferramentas e de animais. Pergunta muitas coisas, mesmo as que já sabe. Gosta de jogos e construções, não gosta de fichas nem de livros.
O M. tem uns olhos muito brilhantes, que brilham coisas diferentes. Há dias que chegavam a brilhar zanga, outros brilhavam tristeza, noutros parece que brilhavam um pouquinho menos… Não recusava nenhuma proposta, mas aceitava muito poucas… eu procurava proporcionar-lhe actividades pedagógicas motivadoras, integrando os temas de que ele gostava e diversificando com estímulos apelativos… mas ainda assim, havia coisas que tínhamos mesmo que praticar para o M. poder aprender a ler e a escrever. Este menino não gostava dessas coisas.
E assim fomos indo… avançando devagarinho nas aprendizagens escolares. Oscilando entre a cooperação e a resistência, entre a motivação e a prostração, entre a superação e a desistência… eu e ele. Fomos indo… eu cada vez mais segura da forma como queria estar com ele e ele cada vez mais colaborante.

Um dia, o menino chegou com os olhos a brilhar um pouco menos. Pensei: «Há dias assim, basta manter-me ligada à minha intenção, conectada e presente, e, haja o que houver, tudo servirá para aprofundar o conhecimento que temos um do outro e
cada um de si; não basta aprender coisas da escola…». Mas o menino tinha outro plano. Fazia ski com a cadeira, falava com a língua fora da
boca, sendo impossível perceber uma única palavra do que dizia. Dei-lhe tempo. Muito tempo. Propus. Perguntei. Sugeri. Deleguei. Parecia que nada, NADA funcionava.


À minha frente, uma criança de olhos um pouquinho menos brilhantes, à espera da minha reacção. Certa de que seria tudo o que já conhecia. Naquele momento eu percebi que era isso que o M. esperava (mas não era o que ele precisava). Arrisquei: «M., eu já percebi que se passa qualquer coisa. Não sei o que é. Mas eu não me vou zangar contigo.»
Ai. O que eu fui dizer!? Eu não me queria zangar. Mas o plano do M. era outro. O ski com a cadeira virou surf em vagas gigantes, a mesa, com tampo de vidro, flutuava por breves mas frequentes instantes, a cinco centímetros do chão. Para além da língua de fora para
falar, o M. colocou um lápis em cada narina…
Berrei bem alto (dentro da minha cabeça!): «O que é que o M. precisa?». O meu berro mental impeliu-me para a acção:
«M., parece que eu dizer-te que não me iria zangar contigo te levou a fazer coisas mais desafiadoras, como se quisesses mesmo que eu me zangasse. Eu sei que se passa qualquer coisa. Mas não sei o que é. O que se passa, querido?»
Encolheu os ombros, em sinal de «não sei» (a língua continuava de fora).
«Deves estar muito triste, para tentares tanto que eu me zangue contigo.»
«Mentira». Sussurrou, já com a língua dentro da boca.
Os olhos voltaram a brilhar muito.
«Há alguma coisa que eu possa fazer para te ajudar?»
Encolheu os ombros, em sinal de «não sei». A cadeira e a mesa voltaram aos seus lugares.
«Há alguma coisa que eu possa fazer para te sentires melhor?»
Encolheu os ombros, em sinal de «não sei». Tirou os lápis do nariz.
«Queres um abraço?»
Anuiu com a cabeça.
Saí da minha cadeira, ajoelhei-me à sua frente, para podermos dar um abraço «coração com coração». Abracei-o. Em dois segundos comecei a senti-lo a esquivar-se dos meus braços. Continuei a abraça-lo. Não resistiu. Deixou-se ficar. Não sei quanto tempo durou… mas quando nos afastámos e ficámos com os olhos a um palmo de distância, o M. começou a despejar:
«A minha mãe era para me vir buscar neste fim-de-semana. Não veio. Estava doente. Nunca vem. No domingo já estava boa. Mas não veio. Nunca vem. Achas que está mesmo boa? Será que pode vir no próximo fim-de-semana? Sabes noutra vez também
ficou doente. Não sei se está ou não».
Antes de eu ter tempo de dizer fosse o que fosse, o M. sentou-se e começou a fazer o que tínhamos em cima da mesa. Terminou. Levantou-se e despediu-se com um sorriso, deixando tudo feito.


Já o M. tinha fechado a porta atrás de si, quando me recompus. Continuava sem saber o que lhe deveria ter dito. «Se calhar não precisava mesmo que eu lhe disse nada, só precisava que eu soubesse» pensei. Ele disse. Eu soube.
Continuou a não ser fácil aprender algumas coisas mas foi sempre bom estarmos juntos… e as aprendizagens, lá foram indo…
Nenhum dos pais conseguia oferecer a esta criança a informação e segurança de que necessitava. Ficavam todos suspensos na volatilidade do comportamento e na desorganização da mãe. O pai, consciente da vontade e necessidade das crianças estarem com a mãe, sujeitava-as a aleatoriedade do seu comportamento e agenda, incapaz de esclarecer limites e manter os seus próprios compromissos com os filhos. A mãe, certa de que o pai era um bom homem, sabia que ele faria o que fosse preciso para que eles pudessem estar com a ela, mesmo que isso implicasse viverem permanentemente na incerteza do que iria acontecer e os impedisse de fazer qualquer plano e estabelecer rotinas. Não havia sinais de ressentimento de um em relação ao outro; pelo contrário, o reconhecimento da importância de cada um era de um valor inestimável. Também não havia sinais de um deles assumir a responsabilidade pessoal sobre o seu papel parental e salvaguardar os limites e necessidades dos filhos.

Por Mafalda Correia