Academia de Parentalidade Consciente

Nós, As Crianças E A Morte

de Tânia Mestre

Há 3 dias estive num funeral. Um tio querido sofreu um AVC que não deu hipóteses. Ainda esteve 12 dias em coma mas acabou por falecer. A primeira perda em muitos anos na família do meu marido, deixou-nos a todos devastados.

Hoje vou a outro funeral. De um amigo, da mesma idade do meu marido, um homem por demais gentil, de olhos meigos e sorriso sincero. Tal devia ser o seu sofrimento atroz que resolveu acabar com a própria vida. Cá deste lado, fica um filho pequeno que adorava o pai e toda uma família destroçada. E os amigos numa tristeza profunda.

A morte é a coisa mais natural da vida. É aquilo que temos por certo, sem escapatória. E ainda assim sinto-me sempre tão revoltada com a morte, tão impotente, tão pequena. Por um lado ter a noção constante da minha própria mortalidade faz-me aproveitar melhor a vida, valorizar cada momento. Por outro lado, deixa-me num pânico contínuo. Quando é que vou morrer? Como é que vou morrer? E os que me são queridos?

Eu SEI que penso nestas coisas mais do que a maiorias das pessoas à minha volta. Não passa um dia que não pense na morte. E isto é pesado para mim. Também sei de onde vem isto…

Vivi de perto, com 12 anos, a doença grave e prolongada do meu avô Tiago, que culminou na sua morte. Vivíamos com ele na altura, assisti a toda a degradação física, a tudo… e foi duro para mim, e para a nossa família.

Pior ainda, acompanhei com 21 anos a doença prolongada e horrível da minha irmã, que era 10 anos mais nova que eu. Tínhamos uma proximidade inexplicável, apesar da diferença de idades. A Virgínia, uma menina doce e sensível, acabou por falecer com 11 anos, depois de 10 meses de pesadelo no hospital de Santa Maria.

Se calhar isto explica um pouco melhor porque é que eu senti, há pouco tempo, que tinha de procurar terapia para resolver estes traumas. Foram coisas muito difíceis de viver e que deixaram um impacto grande em mim. Que se traduz por uma obsessão com a morte que é pouco saudável. Durante muitos anos pensei que estava a lidar com a situação de forma normal. Falo abertamente sobre essas vivências, costumo ser boa a libertar as minhas emoções. Ainda assim, tenho muitos sintomas que me tiram qualidade de vida, e que me deixam a braços com uma grande ansiedade. Isto misturado com todas as minhas outras experiências, claro. Foi por isso que há uns meses atrás resolvi tentar uma terapia a ver se alivio estes sintomas.

Então podem perceber que este tema mexe muito comigo. Esta semana está a ser um desafio muito grande para mim.

A situação do nosso amigo trouxe-me aqui um sofrimento profundo porque representa algo que me entristece muito – esta questão enorme da saúde mental – o tabu que ainda representa. É um tema pouco falado, muito escondido, que ainda causa muita vergonha, sobre o qual há muito desconhecimento. Continua-se a pensar que as pessoas conseguem controlar a sua depressão, a sua bipolaridade, o stress pós-traumático, ou qualquer que seja a doença. A doença mental EXISTE, é tão preocupante como qualquer doença física. Mas em casos como este, de suicídio, continuamos a ouvir coisas do género: “Ai o que ele foi fazer, não pensou nos filhos, na mulher, nos pais, como é que foi capaz, não teve força, etc”. Uma pessoa para chegar ao ponto de cometer suicídio – eu não consigo imaginar a dimensão do sofrimento, da escuridão, do desespero profundo que devia estar naquela cabeça. Todos os demónios que circulavam por ali. Eu não faço ideia. Eu não posso julgar.

Eu sinto-me julgadora, isso sim, de uma sociedade que ainda está tão longe de valorizar a saúde mental e emocional. Uma sociedade que continua a dizer às crianças: “não chores, não fiques triste, não estejas assim. Chorar é para meninas, os homens não choram, já és um homenzinho, tens de ser forte, não sejas mariquinhas”. Especialmente os rapazes sofrem ainda mais com isto. Ainda temos muitos filtros que vamos colocando aos rapazinhos enquanto crescem, filtros que são difíceis de dissolver quando chegam a adultos. Depois acham que têm de ser fortes sempre, providenciar à família, ser o pilar, nunca vacilar. Fico sensibilizada por estes homens que têm uma alma mais frágil e vêm-se condicionados a esconder, a ocultar, a não “dar parte de fraco”.(*)

Por outro lado tenho pensado muito, muito, na criança que fica – o que lhe vão dizer? Como é que ela vai gerir isto tudo? Como é que uma criança gere a morte? O que me leva a outro tipo de reflexões importantes aqui para o blog – que tem a ver com educação e parentalidade.

No funeral do nosso tio não levei os meus filhos, tal como muita gente diz, “não é ambiente para crianças”. Se o meu filho mais velho (6 anos) pedisse, tinha-o levado (ficando provavelmente mais de fora a observar). Mas não se falou em tal, e eu também não iria sugerir… No entanto as crianças aperceberam-se, especialmente o mais velho, e fez várias perguntas. E isto trouxe-me ao tema de como falar da morte às crianças. Observo muitos pais com dúvidas de como abordar isso com os mais pequenos, e sei que muitos dos pais tentam proteger a criança, na sua melhor intenção, deste assunto difícil. Sei que muitos pais dizem quando o cão morre, por exemplo, que ele foi para uma quinta onde podia correr livremente. Sei de pais que dizem aos filhos que os avós estão no hospital, quando já faleceram. Outras que dizem que x pessoa que já morreu, está noutro país.

Quando os meus filhos me fazem perguntas sobre a morte, o que já vai acontecendo, acreditem que engulo bem em seco, e faço um grande esforço porque de imediato isso traz ao de cima todas as minhas coisas mal resolvidas com esse assunto, todos os meus fantasmas (pun intended), todas as minhas dificuldades. Mas, por isso mesmo, porque não quero que eles passem por isto, sinto-me no dever de fazer com que os meus filhos olhem com a máxima naturalidade para a coisa que afinal é a mais natural de todas.

O que faço e o conselho que dou a todos os pais com quem falo sobre isto, é dizer a VERDADE. Claro que temos de ter em conta cada situação e recorrer à nossa sensibilidade e bom senso. Atender à idade da criança, nível de desenvolvimento e maturidade. E não são necessários muitos detalhes, claro. O meu filho ainda não se apercebeu que hoje vou a este funeral – não faço questão de lhe contar, mas não faço questão de lhe esconder. Se ele perguntar, eu respondo.

Apoio-me muito na natureza para explicar estes fenómenos da existência. Se eu própria não percebo, como explicar a uma criança? Ter animais é fantástico porque os confronta com o ciclo da vida. Aqui em casa já morreram passarinhos, galinhas, muitos insetos amigos. Isso é sempre uma preparação para o tema. Tendo a explicar o processo olhando para a Natureza à nossa volta: somos apenas seres vivos, iguais aos animais, às flores, às árvores. E TODOS os seres vivos nascem, vivem, eventualmente reproduzem-se, e morrem. O ser humano não é diferente.

Depois já vieram as perguntas, do meu mais velho, de 6 anos: “e o que acontece depois, mãe?”Já lhe faz confusão o que é isso de morrer, o que se sente? O que acontece? Mostrou-se angustiado e até chorou de aflição (podem imaginar o MEU nível de angústia nesse momento). Tive de dizer a verdade. “Eu não faço ideia. E eu também me sinto angustiada com isso, é de facto algo transcendente para nós humanos”. Expliquei-lhe que há muitas crenças no mundo, das diversas culturas, religiões, e que há muitas opiniões diferentes sobre o que acontece. Mas que EU, na verdade, não sei. E que o que sei é que devemos viver o melhor possível o tempo que nos é concedido no Planeta – sermos bons uns para os outros, amar a natureza e os animais, ser felizes.

Penso que com as crianças a honestidade funciona sempre melhor.

Tenciono continuar a ser honesta e, muito importante, a acolher as emoções que os meus filhos forem demonstrando nestas conversas. Porque também já vieram as perguntas, “e se o pai morrer? e se tiver uma doença?” Eles demonstram essa preocupação, e como os compreendo! Não consigo responder “isso não vai acontecer, esquece isso!” Como é que eu posso garantir isso?? Porque eu não sei!!!!! Então digo algo do género “Está tudo bem agora, somos saudáveis e felizes e isso é que interessa. Se algo acontecer, depois vemos como lidar e há-de ficar tudo bem. Se tudo correr como esperado, morremos todos muito velhinhosPor agora vamos aproveitar que estamos vivos e saudáveis.

Não acho saudável distraí-los para outra conversa, mentir, ou fingir que nunca nada vai acontecer. Penso que foi por fazerem isso um pouco comigo que eu ganhei certos traumas. Quando eu perguntava era porque queria saber, porque tinha essas curiosidades dentro de mim. Mas sendo temas tabus, a conversa era sempre evitada, o que não significa que eu não ficasse a pensar nisso. E sozinha, a minha mente vagueava. O meu pai por acaso sempre foi mais de me dizer a verdade, e lidar com as minhas perguntas com honestidade e respeito. Tenho uma forte crença que vem dessa atitude do meu querido pai a minha parte mais equilibrada e forte. Negar as coisas não as faz desaparecer. Só faz que as crianças tenham de lidar com a questão sozinhas. Isso não é lá muito profícuo – para quem tem intenção de educar crianças bem resolvidas, mentalmente fortes e equilibradas.

Portanto, sejamos mais abertos com os tabus, seja a morte, a doença mental, ou o que seja. Encaremos a nossa humanidade com respeito e humildade. Eduquemos as crianças para a verdade, a compreensão, e inevitabilidade da vida e da morte, da doença e da saúde.

E sejamos bons uns para os outros enquanto aqui andamos.

(*)Para mais sobre este tema específico, recomendo vivamente o podcast Inspiração para uma Vida Mágica, episódio 65 “As Máscaras da Masculinidade”.