Academia de Parentalidade Consciente

Um Processo de Aceitação

Capítulo I
“O Fado do Cavaquinho”

 


Parte 1 . Leitura Transgeracional

O meu querido avô paterno, era um ilustre guitarrista de Fado. Teve o privilégio de acompanhar a Amália Rodrigues durante os seus “anos de ouro”. Deu espectáculos por todo o mundo  conheceu muitas pessoas interessantes e fez carreira a tocar Guitarra Portuguesa, que adorava.

O seu primeiro cavaquinho, foi-lhe oferecido aos 10 anos, dia que ele jamais esqueceu pois foi uma grande alegria recebê-lo.

O meu avô faleceu quando eu tinha cerca de 13 anos, mas antes ofereceu-me o seu cavaquinho. Quando saí de casa dos meus pais, levei-o comigo, e guardei-o com muito Amor, numa estante da nossa sala, à vista de todos.

O meu Pai, na sua adolescência, pediu ao meu avô para o ensinar a tocar. O meu avô recusou, por achar que uma carreira profissional na música era demasiado cansativa, exigindo trabalho nocturno e não queria isso para o filho.

Quando eu completei 10 anos o meu pai ofereceu-me um lindíssimo piano. Eu fiquei radiante! Impulsionada por ele, comecei a ter lições e   passo com distinção as provas de admissão ao Conservatório de Lisboa. O meu Pai estava orgulhoso! Eu tinha herdado o jeito para a música do meu avô, e ele estava feliz por poder dar à sua filha a oportunidade, que ele não teve, de entrar no mundo da música.

Eu estava muito entusiasmada, adorava saber tocar piano e tinha consciência da facilidade com que o fazia.

Os anos passaram. Eu já estudava piano há 4 anos e o grau de exigência do Conservatório aumentou. Quem estuda no Conservatório é avaliado pelo seu desempenho em certas partituras pré-definidas que tem de estudar com toda a dedicação.

Segundo o meu pai “Bastava estudar uma hora por dia”, “Se eu tinha um dom, porque não o aproveitava?”, “Tu não devias sair com amigas, quando tens uma partitura para estudar!”

Ora, com o nível de exigência a aumentar, o tempo que eu dedicava ao estudo do piano, talvez 2 horas por semana, não chegava para ter notas excelentes.

Certa vez, quando recebi um 14 na avaliação final senti-me feliz. Não tinha estudado quase nada e mesmo assim tinha tido uma nota razoável! A reacção do meu pai foi dizer-me que eu podia ter feito melhor. Para ele, podia ser sempre melhor.

Eu sentia-me incapaz de satisfazer as suas expectativas. A questão é: Será que eu queria “fazer melhor”? Eu encarava a posição do meu pai como muito crítica, e sentia que não queria estudar mais piano, mas não sabia porquê, e não houve curiosidade, nem abertura por parte do meu pai para tentar perceber a causa da minha desmotivação. Ele apenas atribuía a minha desmotivação á preguiça, ao facilitismo – “Tens um dom e não o aproveitas”.

Assim, foi ocorrendo uma transformação da minha relação com o piano e com o meu pai, que passou de harmoniosa a conflituosa.

Paradoxo “Se eu toco piano o meu pai gosta de mim, se eu não toco não gosta”.

Eu acabei por desistir do piano aos 14 anos, e nunca mais voltei a tocar.

Sentimentos da filha

Insuficiência para prosseguir estudos no piano (falhanço)

Incapacidade para agradar o pai

Ressentimento

Sentimentos do pai

Pena por eu não continuar no mundo da música e aproveitar o meu “dom”

Desorientação, nervosismo.

Sentimento de insuficiência por não conseguir evitar a desistência apesar das tentativas (falhanço)

Ressentimento

Estes sentimentos mantiveram-se cristalizados durante os 20 anos que se seguiram. Durante todo este tempo, o ressentimento mútuo, a desilusão e a resistência vs aceitação, fizeram parte da relação existente entre pai e filha.

 

Parte 2. Insight

Despertei para a Parentalidade Consciente há 3 anos, na sequência do nascimento dos meus três filhos. A Luz 6 anos, o Afonso 5 anos e o Dinis 16 meses.

Novembro passado, o meu pai deu-me uma infeliz notícia, que está doente com cancro no pulmão.

Fiquei muito triste e desesperada e chorei muito, muito. Nessa noite percebi que a doença do meu pai tinha que ser a oportunidade para ambos da (re)conexão que tem vindo a ser adiada ao longo da vida.

O cavaquinho do meu avô Domingos é uma relíquia com quase 100 anos, e como já disse está à vista de todos, num móvel com portas de vidro. Os miúdos sabem que naquele móvel estão coisas muito significativas para o pai e para a mãe (coisas de viagens, livros preferidos, etc.) e que se quiserem abrir as portas e mexer nas coisas podem fazê-lo, desde que nos peçam.

Os meus filhos pedem diversas vezes para mexer no cavaquinho do bisavô Domingos e a minha resposta tem sido sempre que não. Não! é uma relíquia da família, Não! é muito antigo e pode estragar-se. Eu digo que Não!, ponto final.

A verdade é que este mesmo “Não”, também o ouvi muitas vezes do meu pai. Sempre com muitas reservas em relação ao cavaquinho, se eu não iria danificá-lo, se eu iria guardá-lo num sítio seguro quando fosse viver para a minha casa. Eu sentia-me irritada, triste, insegura, impotente com esta falta de confiança do meu pai.

Percebi que a minha atitude com os meus filhos estava a ser exactamente a mesma que o meu pai tinha tido comigo. A prática da Parentalidade Consciente, “treina-nos” enquanto pais para nos pormos em causa “regularmente”. Esta prática permite oportunidades de desenvolvimento pessoal únicas se estivermos atentos aos momentos.  Então percebi que o meu “Não!” automático não me estava a servir, não estava a servir as minhas intenções. Pelo que começei a deixá-los mexer no cavaquinho na mesma semana em que decidi aceitar o meu pai.

Acontece que apesar de mexerem com todo o cuidado, sentadinhos no sofá para não o deixar cair e supervisionados por mim, deu-se um acidente: Partiu-se uma corda do cavaquinho…

O meu pai foi a minha casa, uns dias após este “acidente” e eu contei-lhe o sucedido.

Disse-me que seria difícil substituir a corda, que eu não devia ter deixado os miúdos mexer, que tenho uma atitude de quem não estima as coisas.

As minhas Intenções

Restabelecer,  nutrir uma relação de aceitação com o meu Pai

Aceitação, como processo de desenvolvimento da minha própria auto-estima

Exercer a Parentalidade no sentido de potenciar a auto-estima dos meus filhos

Reflexão transgeracional

Se eu não tivesse deixado os meus filhos mexer no cavaquinho, guiada pela prática de Parentalidade consciente, o processo de aceitação não teria começado.

O Cavaquinho é um símbolo na nossa família. É verdadeiramente uma relíquia entre nós. Símbolo da música e da nossa sensibilidade musical, do esforço do meu avô, do prazer de fazer algo que se gosta. Símbolo do amor que existe entre nós, pois foi passado de geração em geração, sendo que eu pretendo passá-lo aos meus filhos um dia mais tarde. Porém, a história do cavaquinho carrega muitas mágoas. Um pai que nunca foi ensinado a tocar e que se desilude muito quando a filha não quer tocar mais. Um cavaquinho que “dói” se for mexido. Não se pode mexer num coração que está ferido, pois dói muito. Então, quando temos medo de mexer na ferida, pensamos que é melhor resguardarmo-nos atrás de um vidro, e cristalizar. Depois do cavaquinho partir a corda, esse momento que eu considero mágico, entendi a dimensão da dor do meu pai, pois percebi também que tinha a mesma dor que ele. Um processo de aceitação em que eu me atrevi a “mexer”. Eu disse  Sim!!Eu finalmente quero “aprender a tocar este cavaquinho”! Quero aprender a “tocar o coração do meu pai.”

O fado do cavaquinho é um fado de Aceitação. Uma relíquia com história. Daqui a cem anos será que os meus trinetos saberão o motivo do cavaquinho ter três cordas velhas e uma nova?

Ao longo destes vinte anos, o meu pai disse-me inúmeras vezes que o piano tinha de ser afinado, e as teclas reparadas…”cuida do piano filha, não deixes riscar”,  “Pai eu já não toco piano! Não preciso de o afinar agora…” aqueles pedidos do meu pai soavam-me tão estranhos. Eu criticava-o dizendo que ele era obcecado pelo piano e que ficou parado no tempo…mas eu também fiquei parada. Nunca afinei o piano até agora…

Agora sinto que quero afiná-lo, pelo meu pai, por mim, pelos meus filhos.

Neste processo aprendi que desistir da escola de música não significou desistir da música. Eu nunca desisti da música na minha vida, e vivo a vida a cantar, bem afinada por sinalJ

Estratégias utilizadas:

Para concretizar o processo de aceitar o meu pai tal como ele é, e aceitar-me tal como eu sou:

– Promovi encontros/Diálogo com o meu Pai

– Mostrei interesse pela sua história de vida, e dos seus pais

-Explorei a nossa relação enquanto pai/filha, desde a infância até aos dias e hoje

Sempre que o meu pai “atacava” com julgamentos, eu utilizava a comunicação não violenta.

(ex: –Podias ter sido uma pianista, e não aproveitaste o teu dom! – Pai, quando diz que eu podia ter sido uma pianista, eu sinto-me tão triste, como se não fosse suficiente. Tive necessidade de reconhecimento da sua parte, ao longo da vida e gostava que agora, fizesse um esforço para olhar para mim como eu sou e aceitar as minhas escolhas)

– Sempre que tive oportunidade demonstrei gratidão por tudo o que fez por mim, pelas suas intenções (ex: Sempre adorei música e sinto-me grata por ter plantado esta semente em mim. Recordo-me com emoção das tardes que passávamos juntos a ouvir música, e o pai me “apresentava” Jazz lembra-se?

– Reconhecimento e reforço positivo a ambos sempre que se justificou

– Em momentos de maior vulnerabilidade, tive sempre presente as minhas intenções, que tinha claramente definido.

– Curiosidade para me conhecer melhor e ao meu pai

-Prática de Lovingkindness ou Methabavana Meditation

 

Parte 3. Mudança

O diálogo e a comunicação não violenta abriram a possibilidade de conexão e de exploração do outro nas suas diversas possibilidades.

Entretanto o meu pai foi operado e eu tenho acompanhado a situação. Tenho estado mais presente na sua vida e ele na minha.

Claro que este é um processo recente e ainda estamos no início, mas tenho a certeza que daqui para a frente estaremos mais unidos.

Sinto que aumentei a minha auto-estima, por ter decidido iniciar este processo de aceitação. Consigo posicionar-me nesta história não como uma “vítima” das expectativas do meu pai, mas sim como responsável pelas minhas necessidades e escolhas ao longo da vida.

Vou começar a “tocar” o coração do meu pai e a nossa relação, através de objectos significativos para ambos:

-Reparar a corda do cavaquinho simboliza reparar a nossa relação…

-Afinar o piano e colar as teclas que estão descoladas…simboliza manutenção da relação que foi deixada cristalizada.

Agendei com o meu pai, a ida a uma loja de música em Lisboa para repor a corda do meu/nosso cavaquinho.

Na certificação da Academia de Parentalidade Consciente a Mia distribuiu-nos uma pedra. Na minha escrevi Aceitação. Lembro-me de ter pensado na altura de que seria praticamente impossível eu conseguir saber sequer o que seria aceitar esta minha “história” e agora, passados apenas 3 meses, posso dizer que pus uma “pedra” neste assunto. Adoro a minha “Pedra da Aceitação” e também a tenho na sala, medito com ela, e guardo-a no coração, junto às minhas coisas preferidas.

 

Continua…

Ana Camarinha

mais info sobre a facilitadora: aqui

Se queres saber mais informações sobre a Certificação de Facilitadores de Parentalidade Consciente:

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