Academia de Parentalidade Consciente

Professora, eu tenho tantas coisas na minha cabeça

de Inês Ferreira

“Professora, eu tenho tantas coisas na minha cabeça” – dizia-me hoje o M. de 7 anos.

O M. é uma criança do 2ºano. É comunicativo, simpático, meigo, perspicaz, curioso, com uma forte iniciativa e vontade de fazer, de ajudar. O M. tem também uma enorme dificuldade em parar. Parar de falar, de se mexer, de implicar com o/a colega. Para ele relaxar é um desafio muito grande, o mesmo se pode dizer sobre se concentrar, sobre ouvir, ou sobre confiar em si ou nos outros.
O M. tem quase sempre olheiras e uma energia que parece inesgotável. O corpo e a mente parece que estão ligadas a uma bateria.

O que eu não saberia, caso ele não me tivesse contado, é que também tem:
– um irmão de 2 meses,
-os pais separados muito recentemente,
-que acorda muito cedo e se deita muito tarde.

Que hoje depois da escola e AEC’s ainda vai ter:

-aulas de natação,
-de ir a casa da avó falar com ela,
-de ajudar a mãe nas compras,
-de arrumar as coisas para ir para casa do pai,
-de jantar e dormir (e tem muita dificuldade em dormir).

À primeira vista o M. é um miúdo mal comportado, inoportuno, impulsivo, hiperativo e com défice de atenção, mas quando olhamos mesmo com olhos de ver, vimos bem mais do que isso.
Talvez consigamos ver uma criança com “demasiadas” coisas na cabeça e na sua vida real de 7anos. Muitas coisas que não compreende. Muita gente agitada e com desafios enormes que, neste momento ou nos últimos tempos, não conseguem ter tempo para o ajudar com as suas necessidades. E ele quer ser visto, ouvido, reconhecido. Ele quer pertencer, quer sentir que é importante. Ele quer sentir que é amado. Ele quer SER e EXISTIR.

Então na verdade, embora qualquer professor e mãe/pai quisesse que o M. tivesse comportamentos mais assertivos, tivesse mais maturidade, ele não consegue. Ele quer, mas não consegue. Sente-se muitas vezes frustrado, errado, incapaz. Sente que a única forma de ter atenção, ainda que negativa, é a causar distúrbios, é a perturbar, é a falar alto e fazer barulho, muito barulho.

O M. e mais meninos(as) da sua sala têm na verdade comportamentos alinhados com as suas necessidades. Acredito que à medida que estas necessidades forem sendo preenchidas, o M. tal como outros colegas terão outro tipo de comportamentos. E aqui está o desafio para os adultos presentes na sua vida (incluíndo-me a mim e outros professores) e na sociedade em geral.

Quando é que o M. e tantas outras crianças poderão, mesmo, ter tempo e permissão para viver a infância? E para SER criança? Quando é que se vão sentir vistos e ouvidos?

IMPORTANTE: O M. é uma criança do 2ºano de 7anos. Comunicativo, simpático, meigo, perspicaz, curioso, com uma forte iniciativa e vontade de fazer, ajudar. – que pede, da maneira que sabe e consegue – AJUDA

A minha intenção com a partilha de ontem – “Professora, eu tenho tantas coisas na minha cabeça” – foi, principalmente, criar oportunidades de reflexão e auto questionamento. E sinto, honestamente, que lhe falta uma parte.

A aula de ontem e algumas anteriores, naquela turma, não têm sido nada fáceis para mim. Tenho várias turmas, algumas delas com alguns alunos com comportamentos desafiantes, mas esta turma, particularmente, tem-me possibilitado muitas reflexões e aprendizagens.

Ontem, não fui a pessoa, professora que gostaria de ter sido, também não consegui ter a calma, serenidade e assertividade que sei que posso e consigo ter. Ou seja, ontem não fui o exemplo que posso e quero ser.

Esta conversa com o M. e outros meninos(as), em particular, surgiu porque já me encontrava no limiar da paciência (digamos o meu tendão de aquiles, mas também um recurso em que tenho feito grandes progressos). Surgiu porque me sentia frustrada com que estava a acontecer. Surgiu porque não estava a conseguir aceitar a realidade naquele momento. Surgiu de uma situação de conflito entre as minhas necessidades e as necessidades destes alunos. Ou melhor, surgiu na forma como, todos, estávamos a comunicar, as nossas necessidades.
E ainda bem que surgiu. Assim, pude perceber que, naquele momento, era mais importante estar de 1para1, do que estar “pré-ocupada” com o barulho e confusão, com o não estar a cumprir o que tinha planeado.
Também percebi o quão inflexível e injusta estava a ser com alguns alunos, ainda que inconscientemente e sem ter essa intenção.

O M. trouxe-me à realidade, ao aqui e agora, ajudou-me a perceber que alguns daqueles meninos não têm ainda competências para escutar, a sua mente e corpo ainda não são capazes de se sintonizar, mesmo que por curtos momentos. Ainda lhes é muito difícil esperar pela sua vez para falar, sem “atropelar” os colegas ou a professora. Parece tão básico. Tão simples. Toda a gente quer que as crianças, eu inclusive, já tenham estas competências sociais e emocionais básicas adquiridas. Mas muitas não têm. E não é porque não queiram ou porque sejam mal educadas. [Um dia falarei mais dos possíveis porquês.]

E é por aqui que eu posso e quero ir. Usando a minha creatividade, a minha experiência, a minha capacidade de observação e a minha empatia. Sou eu quem precisa de se ir ajustando ao que eles me comunicam. É por aqui que é o (re)começo.

Outra coisa que o M. me ajudou a perceber, foi que não era só ele que estava cansado. Eu também estava, muito, tem sido uma semana complicada com os meus filhos doentes. No fundo, lá está, eu e o M. estávamos os dois com poucos recursos. A questão é que eu é que sou adulta. E eu não quero, nem posso me desresponsabilizar do meu papel, até porque se o fizer vou estar apenas a enganar-me e a sabotar o meu crescimento e a apredizagem dos meus alunos. E eu quero crescer com estas crianças, ao fazer isso estou a permitir-me aceitar o erro e voltar a tentar, as vezes que forem necessárias, e isto, creio eu, é aprender e ensinar pelo exemplo.

O mais interessante e importante, é que este caso, esta situação permitiu que eu conseguisse conhecer melhor o M. Permitiu-me aceder à empatia e criar ligação. E ele sentiu isso mesmo e reagiu à minha honestidade e vulnerabilidade, da mesma forma.
Acredito muito que as aprendizagens são mais significativas quando há ligação entre o coração e a mente, entre as emoções e a mente. É por aqui que quero e vou continuar [especialmente nos dias difíceis]